sábado, 11 de agosto de 2007

Salomé e Greta Garbo - Uma noite inesquecível na Cinemateca!

Sessão histórica no dia de ontem. Na abertura da I Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, junto com a inauguração oficial da nova sala da Cinemateca Brasileira, denominada BNDES, a projeção do filme Salomé (1923), de Charles Bryant, contou com presenças de peso. Não é todo dia que se assite a um filme junto com Ismail Xavier, Gustavo Dahl, Carlos Calil, Pedro Farkas, Carlos Magalhães, Helena Ignez e acompanhamento musical de Lívio Tragtenberg. Foi realmente um privilégio estar presente naquele momento, tornados ainda mais especiais pelos discursos inspirados do Gustavo Dahl, hoje presidente do Conselho da Cinemateca, e do Carlos Calil, atual secretário municipal de Cultura. Fazendo uma espécie de rememoração de quando ia, décadas atrás, aos cinemas assitir filmes silenciosos - ou mudos, de acordo com a tradição francesa - Dahl expressou seus sentimentos de como aquele tipo de programa conservava uma "pureza essencial" do cinema que, depois de ganhar a banda sonora, aproximou-se por demais da vida real, como se tivesse perdido um pouco de sua força e sedução. Por sua vez, Calil derrubou o mito de que São Paulo é a cidade que tudo oferece em termos de entretenimento e cultura. Fosse assim, não estaríamos presenciando a realização da primeira Jornada de Cinema Silencioso. E, com certeza, ainda há muito para ser feito em termos de programação cultural - cinematográfica, em particular - na capital paulista (e não só aqui, vale dizer!)

Digno de elogios é o livreto feito para a Jornada. Para além da divulgação dos filmes programados e suas sinopses, o material traz artigos críticos de gente como Ben Singer falando sobre cinema e modernidade; Luciana Corrêa de Araújo, abordando o cinema pernambucano dos anos 20; diversos textos e comentários sobre O Gabinete do Dr. Caligari, de F. W. Murnau; entre outras boas resenhas. A edição do livro foi baseada nas antigas revistas de cinema da época - como "A Scena Muda" - que, não tendo ainda uma preocupação grande com a continuidade do texto página por página, às vezes, jogavam lá para as últimas páginas o que havia começado na página 10, por exemplo.

A sessão de Salomé foi precedida de filmes publicitários estrelados pela ainda vendedora de uma loja de departamentos, chamada Greta Garbo. Feitos em 1920-21, mostram uma mulher ainda não totalmente em forma, digamos, um pouco acima do peso. Porém, já no último trecho, quando ela vai embora da Suécia para Hollywood, é visível a transformação e como, a partir dali, todo o mistério e a sedução daquela mulher de voz rouca e com um toque levemente masculino - como ressaltou Gustavo Dahl naquele seu discurso de abertura - iria facilmente hipnotizar gerações de homens, e também de mulheres!

Quanto a Salomé, depois de terminada a sessão, torna-se compreensível por que a peça de Oscar Wilde, na qual o filme é baseado, causou tanta controvérsia à época, sendo inclusive proibida em alguns estados americanos. Pontuada por questões sobre homossexualidade e incesto, a película conta a história da jovem Salomé (interpretada pela bela Alla Nazimova), uma ninfa de 14 anos, enteada de Herodes (Mitchell Lewis), rei da Judéia, cobiçada por todos os homens e que acaba se apaixonando por Iocanaan (Nigel De Brulier), o profeta. Rejeitada, ela decide vingar-se de Iocanaan. Para isso, sujeita-se a uma dança sensual para seu pai em troca de uma promessa dele: ela poderia pedir qualquer coisa a ele. Pede a cabeça do profeta numa bandeja de prata! Sadismo é pouco para essa menina mimada e geniosa. Mesmo morto, ela continua o amando. Como ela mesma afirma: "O mistério do amor é maior do que o mistério da morte."

Amor, traição, vingança, danação. Todos esses temas estão ali colocados. Tudo com um toque, diria, levemente expressionista. Os fortes contrastes, atuações exageradas, cenários exuberantes, maquiagens pesadas são elementos formais do filme que reforçam as tensões e tornam Salomé um grande filme. A trilha criada por Lívio Tragtenberg para a sessão ainda amplificou o desepero e a angústia, misturando ruídos, sons que emulavam gritos e um saxofone lento e pesado. A pianista luso-germânica Eunice Martins e a percussionista americana Robyn Schulkowsky completaram o trio de instrumentistas da projeção.

No fim, aplausos em abundância e os tradicionais cumprimentos e as conversas de roda espelhadas pela sala novinha em folha. Lá fora, tinha início o coquetel, regado a vinho, cerveja, uísque e muitos petiscos e salgadinhos. A noite ainda ia longe...

Para conferir a programação da Cinemateca:

http://www.cinemateca.gov.br/programacao.php?id=26

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Comédia do Poder, A - O sorriso de Golias!

O título original do filme A Comédia do Poder, de Claude Chabrol, é L'ivresse du pouvoir. O termo francês ivresse significa, na verdade, "embriaguez". Ao pé-da-letra teríamos, portanto, "A Embriaguez do Poder". Os responsáveis pela tradução foram, pelo menos dessa vez, felizes ao substituir "embriaguez" por "comédia", mas prestar atenção na versão original pode nos ajudar a entender a proposta do cineasta francês. De fato, o que está em discussão aqui é a capacidade que o poder tem de fazer o ser humano perder certos "pudores". Olhar a cidade e as pessoas de cima, bem de cima, quase como um Deus sentado nas nuvens, realmente mexe com os sentidos. Todos (?) sabemos, no entanto, que quanto maior o porre, maior a ressaca e maior a dor de cabeça no dia seguinte! Para curar uma ressaca de álcool, um comprimido de Engov, muitas vezes, é suficiente. Já no caso da ressaca do poder, o remédio é confiar no "sistema".

Nesse ponto, acredito estar uma das maiores qualidades do filme de Chabrol. O que acontece é que normalmente, em certas críticas superficiais de uma dita "esquerda" à sociedade capitalista, acusa-se o "sistema" como o culpado de todos os males do mundo, sem se especificar ou definir que raios quer dizer esse tal "sistema". A impressão que fica é que parece haver uma entidade viva sobrenatural e que é senhora do destino humano, senhora, aliás, muito cruel. Em A Comédia do Poder, essa senhora - ou seria melhor falar "senhor"- tem rosto, nome, identidade, computador, bebe champanha selecionada e fuma charutos lindos e enormes. Conhecendo o "inimigo", as chances de derrotá-lo aumentam exponencialmente. Ou, pelo menos, a derrota não é tão devastadora e humilhante. (Aqui, vale lembrar o caso da guerra contra o terrorismo do governo Bush. Afinal de contas, quem é o adversário a ser derrubado? Os muçulmanos? Os homens barbudos e de turbante? O sentimento de medo?)

Não é minha intenção acabar com a graça de quem ainda não assitiu ao filme e está perdendo o seu tempo lendo essas linhas, mas a seqüência final diz muito sobre o que pensa Chabrol de todo esse complicado problema. Quando somente uma pessoa, por mais esforçada e competente que seja, decide empreender uma batalha contra os desvios de comportamento de uma determinda sociedade ou um determinado grupo social, suas possibilidades de êxito são nulas. Pode-se mudar uma coisa ou outra, mas não passam de correções cosméticas, circunstanciais. A estrutura permanece a mesma. Só muda a aparência e os modos de agir. A "renovação" é epidérmica. Sem mais forças para lutar, o que resta é sair de cena e recolher-se às sombras. E o mais preocupante é que o "bastão" é passado para a geração seguinte que, ao que tudo indica, continuará atuando de forma isolada e, portanto, ineficaz. Estaria implícito nesse movimento uma crítica ao processo de individualismo crescente dos nossos tempos?

E é justamente pensando nessa questão que a pergunta feita pela própria Jeanne ( a juíza destemida interpretada brilhantemente por Isabelle Huppert) ao marido Philippe ( Robin Renucci) no meio da madugada, em meio a uma ápera discussão, ganha uma grande importância. Ela o indaga: "por quem eu gaço tudo isso?" O marido silencia. Ela insiste: "por quem? Novo silêncio. Cria-se, dessa forma, uma profunda ambigüidade, no que se refere às reais motivações de Jeanne. Seria ela uma genuína batalhadora por práticas mais honestas no meio empresarial e político ou estaria preocupada apenas com o próprio crescimento profissional e com a sua vaidade de mulher-prodígio? A resposta para essa pergunta, creio eu, tem relação direta com o desfecho do filme.



Links com críticas e informações sobre o filme:

http://www.revistacinetica.com.br/comediadopoder.htm
http://www.contracampo.com.br/82/festcomediadopoder.htm
http://zetafilmes.com.br/criticas/acomediadopoder.asp?pag=acomediadopoder
http://www.oi.com.br/data/Pages/DF637F29ITEMIDF01AF0DBE63D44C8A9C561F90B136D9EPTBRIE.htm
http://www.cinefrance.com.br/blog/post.php?post=39
http://www.revistapaisa.com.br/anteriores/ed9/retrochabrol.shtm

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Francisco Cavalcanti, cinema popular e sua recepção!


Na semana passada, tive a oportunidade de conhecer um pouco da obra do cineasta Francisco Cavalcanti, nome ligado desde os anos 70 ao cinema marginal da Boca do Lixo paulistana. Foram quatro as sessões a que pude comparecer: de acordo com a ordem em que as assisti, os filmes foram O porão das condenadas (1979), Amor imortal (2001), A hora do medo (1986) e Padre Pedro e a revolta das crianças (1984). No ciclo realizado pelo Centro Cultural São Paulo (Vergueiro), ainda fui apresentado à produção audiovisual do filho de Cavalcanti, Fabrício, que começou desde cedo a atuar nas películas do pai. Do rebento como diretor, conheci somente A pensão (2003). Foi, digamos assim, um "mergulho em piscina de criança" nesse cinema feito com pouquíssimos recursos, muita coragem e relativa aceitação.


"Aceitação"! Eis uma palavra importante quando se procura entender o movimento do cinema da Boca, em particular, e o cinema trash, em geral, realizado por figuras como José Mojica Marins, o Zé do Caixão (presente, inclusive, em alguns filmes dos Cavalcanti) e Ivan Cardoso. No folheto de divulgação da mostra "Francisco Cavalcanti - um cineasta e ator popular", o crítico André Gatti coloca na pauta a definição de "cinema popular", tanto a partir da sua produção como de sua recepção. E é esse segundo referencial que me interessa mais aqui.


Até pelo fato de as sessões no CCSP serem gratuitas, nota-se a presença na sala de pessoas muito humildes financeiramente (alguns dão a impressão de serem moradores de rua...). Ótimo!!! Que assim continue, apesar de alguns torcerem o nariz, pois esse tipo de freqüentador não respeitaria muito o silêncio sagrado dos cinéfilos. Certa vez, quase fui testemunha de uma briga em plena sessão, pois um rapaz ficou extremamente nervoso com o burburinho vindo do fundo da sala...graças a Deus, os ânimos logo se apaziguaram!!! Bom, o fato é que nas sessões desse último sábado e domingo, a sala contava com um bom número de pessoas, todas devidamente se entretendo com o que estavam vendo. Da minha parte, tive apenas uma decepção grave: justamente o último filme realizado por Francisco Cavalcanti, Amor Imortal, de 2001. Os outros, não obstante todas as precariedades de produção, surpreenderam-me positivamente.


Tudo isso me fez refletir sobre o propósito de um homem que decide realizar obras como essas. Seria ele um abnegado, preocupado que está em satisfazer, antes de mais nada, o desejo do público "popular" por histórias facilmente "digeríveis" e que reúnam elementos tão atrativos, como sexo, sangue e humor? Ou seria ele incapaz de produzir enredos de maior fôlego, com maior densidade psicológica, maior preocupação estética e maior apuro técnico? Considero essa questão de fundamental relevância para se analisar uma obra como A hora do medo ou Amor imortal.


Na primeira, uma mãe e seu filho, ambos traumatizados por maus-tratos do pai violento - que acaba assassinado pelo filho de 11 anos - decidem se vingar da sociedade, mais especificamente, das mulheres. Para isso, atraem diversas moças incautas para sua casa de campo e lá promovem um verdadeiro derramamento de sangue, logo após o filho se esbaldar em aventuras sexuais com as futuras vítimas. O marido de uma delas desconfia das nobres intenções daquela senhora de preto e de seu filho "galã". Decide, então, se candidatar à vaga de motorista particular da família, vaga que, estranhamente, exige que o pretendente não tenha família ou conhecidos muito próximos. A personagem interpretada pelo próprio Cavalcanti consegue o emprego rapidamente e, dessa forma, revelará o mistério do sumiço de sua tão amada esposa. Enredo simples, sexo, violência, pitadas de humor (in)voluntário, personagens muito bem delimitadas em campos éticos opostos, explicações psicologizantes e final (previsível e) feliz. Pronto para ser consumido pelas massas! Sem maiores questionamentos existenciais. No entanto, há de se ressaltar uma certa preocupação com o estabelecimento de um atmosfera tensa e sombria dentro do filme, o que se coaduna com o conteúdo proposto.


É justamente nesse ponto que recai o maior defeito de Amor imortal. Parece não existir nenhum compromisso com algo minimamente elaborado, o que é ainda mais grave quando se tem em mente que é o último filme de um diretor com o longo histórico de Francisco Cavalcanti. Iluminação, elenco, cenários, figurino, procedimentos da câmera, é tudo muito simplista. Em alguns momentos, passa a impressão de ter sido feito por um grupo de amigos que se reuniu um final-de-semana na praia e achou legalzinho realizar um filme caseiro, tudo temperado por mensagens da filosofia kardecista, o que o torna ainda mais entediante. Se a idéia era oferecer um produto popular, Cavalcanti parece ter errado na dose.


Enfim, a discussão está posta e é com muita alegria que os cinéfilos recebem esse tipo de programação alternativa. Não só porque resgata uma parcela importante do nosso cinema como também contribui para a popularização do ato de "ir ao cinema" por parte da camada excluída dos circuitos exibidores comerciais - caros e, muitas vezes, ruins.


Não encontrei quase nada sobre o cinema de Francisco Cavalcanti e o cinema trash realizado a partir dos anos 60 no Brasil. Interessante mesmo, só o link abaixo. Aceito sugestões, indicações e dicas!!!


sexta-feira, 8 de junho de 2007

Um Godard perfeito!

Antes de partir para a crítica propriamente dita, gostaria de fazer uma observação. Este post introduz duas novidades: a primeira, mais óbvia, é que, diferentemente do que havia planejado para esse blog, farei comentários sobre filmes em DVD - inclusive obras consideradas "antigas" -, e não somente sobre aqueles vistos nos cinemas. Afinal, se a internet nos permitiu essa liberdade de expor "pontos-de-vista anônimos", por que ficar preso à lógica dos lançamentos comerciais, tão comum nos veículos tradicionais? A segunda é que, em razão da natureza bastante complexa do objeto ora analisado e da inexperiência do autor que vos escreve este texto, considerei de bom tom ler algumas críticas a respeito de "Viver a Vida" antes de me aventurar nessa análise. Até o presente momento, os textos aqui publicados podem ser considerados "crus", isto é, não vinham precedidos de uma maior maturação.

Dito isto, me proponho a expressar e propagar toda minha admiração por esse filme tão maravilhoso. Hoje, assisti "Viver a Vida" (1962), de Jean-Luc Godard, pela terceira vez, mas por alguma razão que me escapa hoje, somente nesse reexame, percebi toda a força e beleza extraordinárias que emergem dessa história sobre uma vendedora de discos que se torna prostituta e mergulha numa espiral trágica da qual perde todo o controle. Por força das dificuldades financeiras em que se vê enredada, Nana, personagem de Anna Karina, acaba cedendo às "facilidades" da dura vida de prostituta.

Para ela, tudo que acontece em nossas vidas é de nossa total responsabilidade, não deixando espaço para que o "social" intervenha no nosso destino. No entanto, a seqüência final representa, claramente, o oposto, ou seja, como, muitas vezes, fazemos parte de um jogo em que cada movimento é determinado por forças não-individuais - ou sociais. Ali, no meio de uma briga da cafetinagem parisiense, ela é somente uma peça de manobra para que uma estrutura muito mais vasta se perpetue na sociedade. Godard, visionário que era, parecia antever a onda do individualismo exacerbado que passaria a pautar os comportamentos das pessoas e já criticava essa tendência. Será por esse motivo que Nana é premiada com um final tão trágico? Ela, como símbolo daquele tipo de pensamento, deveria morrer?


Aliás, sobre esse final, muito se escreveu sobre sua relação com o destino igualmente fatal da musa do pintor do poema de Edgar Allan Poe, lido pelo próprio Godard num dos tableaux finais. Tão obcecado estava o artista pela perfeição de sua obra - e que o levou a dedicar todo o seu tempo e esforço para terminá-la - que a própria fonte de inspiração, sua esposa, morreu ao seu lado sem que ele se desse conta do que estava acontecendo a seu redor. O pintor buscava, provavelmente, uma representação tão exata da sua esposa, inclusive no que se refere aos aspectos interiores, que terminasse por substituir a própria realidade. "Arte e beleza são vida". Godard, ao contrário, não acredita nessa hipótese. Para o diretor francês, conhecer a essência da vida humana é impossível. Ele até sugere uma tentativa de esquadrinhamento de Nana no prólogo do filme, quando a retrata de perfil e de frente. Porém, a primeira tomada do primeiro tableau a mostra de costas, o que nos impede de conhecê-la verdadeiramente.


"O pássaro é um animal com exterior e interior. Tire o interior e sobrará o exterior. Tire o exterior e verá a alma". Pássaro, símbolo da liberdade. Nana não é um pássaro, Nana não é livre - assim como todo ser humano. Nana está presa na teia social, não possui o livro-arbítrio que diz ter quando conversa com sua amiga Yvette. Não sendo pássaro, isso reforça a tese de que a alma de Nana não é passível de conhecimento. "Eu é outra pessoa", diz ela no interrogatório à polícia quando é acusada de tentativa de furto. A opção de trabalhar com uma personagem que, para ganhar a vida, vende o próprio corpo - o que a liga, diretamente, à profissão de ator/atriz - corpo que representa materialidade, exterioridade é mais uma evidência de que o que está em discussão é o papel de cada um no teatro da vida e, em última instância, a atuação dos artistas no cinema (não à toa, Brecht é uma referência fundamental para Godard).


Não poderia terminar esse texto sem fazer alusão à trilha sonora do filme. Valorizada ainda mais pelos silêncios que pontuam toda a história, as três músicas - duas instrumentais e uma cantada - criam uma atmosfera cheia de significados e, ao mesmo tempo, se adequam perfeitamente ao contexto no qual estão inseridas. O trecho musical que se repete várias vezes exprime com exatidão o estado de ânimo de Nana. O fato de receber cortes bruscos na sua execução, que não permite gerar no espectador uma emoção excessiva, parece ser mais uma referência a Brecht. No caso da cena da dança em meio às mesas de bilhar, a trilha permite à personagem um instante de liberdade, no sentido de uma libertação do mundo em que vive ( a tal ponto que isso chega a incomodar Raoul e seu amigo que conversam numa mesa). E a última - que, salvo um tremendo engano, é de Jean Ferrat - demonstra como Nana ainda representa(va) - a despeito de todas as intempéries da vida - um desejo por mais algo mais simples, até inocente. Num mundo que não permite mais a inocência, o melhor destino, talvez, seja mesmo a morte.
*Para melhor conhecer "Viver a Vida" e a obra de Jean-Luc Godard na internet:


terça-feira, 22 de maio de 2007

Alpha Dog: conflito de gerações ou desencanto do mundo?

Rappers malvados, loiras burras e gostosas, jovens (e velhos) adultos imbecilizados, "fiestas", sexo, drogas. A partir de um conjunto de elementos como esses, reunidos num mesmo filme, pode-se imaginar uma película de caráter mais comercial, que apela para os instintos mais primitivos do ser humano com o intuito de chamar a atenção e causar polêmica (e, também, ganhar dinheiro nas bilheterias!). Alpha Dog, o novo filme de Nick Cassavetes - filho dos imortais John Cassavetes e Gena Rowlands - não cai na armadilha das soluções fáceis e se revela um ótimo retrato do mal-estar que viceja nas sociedades modernas. Ao resgatar o caso recente dos filhos abastados da elite californiana envolvidos com o tráfico de drogas e que, numa atitude mais inconseqüente e irresponsável do que propriamente cruel (o seqüestro do irmão de um devedor de dívidas com drogas) se vêem enredados numa espiral de desespero, sem saber o que fazer com o simpático refém Zack Mazursky (Anton Yelchin), Cassavetes escolhe a opção narrativa de tratar dos problemas da formação dos filhos - como afirma no início a própria personagem Sonny Truelove (Bruce willis, muito bem no papel do pai cínico) - a partir dos seus efeitos, quais sejam, o uso indiscriminado de drogas, o completo descomprometimento com o futuro, a "curtição" como ideal de vida, a busca por uma liberdade fundada tão-somente na negação do que os pais consideram apropriado. Dessa forma, o diretor evita, ao mesmo tempo, propor soluções para o problema da juventude: ou porque ele não tem tal pretensão - a questão é complexa demais para ser solucionada por um único filme - ou porque acredita não haver realmente uma saída para equacioná-lo.

Não se deve pensar, no entanto, que toda a culpa por uma sociedade doente deve ser creditada na conta dos pais. A indústria dos videoclipes, os jogos violentos de videogames, a apologia da violência no próprio cinema (o líder da gangue, Johnny Truelove (Emile Hirsch) possui um cartaz do filme Scarface na parede do quarto), tudo isso cria um caldo de cultura explosivo. Os meios de comunicação e o setor do entretenimento exercem uma influência decisiva na personalidade das novas gerações. O tempo que Cassavetes dedica às festas, ao sexo e às drogas parece nos dizer o seguinte: todos esses elementos são extremamente atraentes, não se pode negar isso! E enquanto as pessoas que procuram dar um direcionamento alternativo à sociedade capitalista continuarem negando a atração desses aspectos, afirmando que "isso é ruim", "isso é feio" ( como faz a personagem de Sharon Stone, Olivia Mazursky, mãe de Zack), não haverá possibilidade de mudança. Por que não enfrentamos, de uma vez por todas, o problema do desencanto da juventude de frente, ao invés de negá-lo? Por que não repensamos quais valores fundamentais devem nortear o comportamento das pessoas num momento histórico propício para reconfigurações estruturais? Enquanto houver uma supervalorização do presente, do carpe diem banalizado, o que veremos, cada vez mais, serão mães chorando os destinos trágicos de seus filhos, completamente confusas entre o suicídio e uma crença frouxa num Deus já quase inexistente.

Outras críticas:

http://www.zetafilmes.com.br/criticas/capa.asp?pag=capa
http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/05/15/295767627.asp
http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1003
http://txt.jt.com.br/editorias/2007/05/18/var-1.94.12.20070518.44.1.xml
http://www.film.com/movies/alphadog/7581475

quinta-feira, 3 de maio de 2007

C.R.A.Z.Y.: ousado e dinâmico!


Tornou-se comum, entre algumas cabeças bem pensantes, apontar a família como uma instituição social falida. Que a família, como unidade social básica, seria foco de neuroses, de comportamentos pouco edificantes e que muitos dos problemas que atingem a sociedade como um todo derivam desse núcleo fundamental. Bom, a se julgar pelo filme C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor, de Jean-Marc Vallée, a teoria é completamente furada. O quarto longa-metragem do diretor canadense faz um verdadeiro elogio à família e o faz lançando mão de um recurso, ao mesmo tempo, original e ousado: o ponto-de-vista de um homossexual!

O protagonista de C.R.A.Z.Y é Zac, o quarto filho de um grupo de cinco irmãos. Praticamente 99% da película concentra-se nos anos de sua juventude, até mais ou menos os 20 anos (apenas o plano final o mostra com uma idade mais avançada, próximo aos trinta). A história tem início no ano de 1960, uma data bastante significativa, afinal de contas, dentro de poucos meses, mudanças profundas abalariam toda as estruturas tradicionais da sociedade, dentre elas, os costumes arraigados e a religião. Nesse contexto de liberalização e de abertura a novas experiências, o filme de Valée procura mostrar que nem tudo era bem aceito, inclusive pelos mais jovens. O homossexualismo continuava - e continua, de certa forma - sendo encarado como um problema, algo perigoso e que deveria ser evitado.

O que mais importa, no entanto, não é essa "denúncia". Chama a atenção, de verdade, o fato de se utilizar uma personagem homossexual para defender valores familiares, o que para o pensamento cristão, configura-se como um contrasenso ("como o ser humano se reproduzirá e se conservará como espécie se a opção afetiva das pessoas for pelo mesmo sexo?"). Aliás, a Igreja, se assistiu ao longa, não deve ter ficado muito satisfeita. A cena da Missa do Galo junto com a música "Simpathy For The Devil" dos Rolling Stones é uma das mais provocativas a que eu assisti nos últimos tempos. Afinal, o que é religião, o que é espiritualidade? Passagem antológica!!!

C.R.A.Z.Y. é dinâmico e utiliza muito bem os efeitos especiais, provando que eles podem, sim, ser usados com propósitos nobres e não somente como atrativo para filmes de ação e aventura. Por exemplo, quando Zac está em Jerusalém e, após ter dormido com um gay local, sai em direção ao deserto num momento quase onírico do filme, a câmera, como se estivesse atrasada, voa pela janela e o alcança já quase desmaiado. É um belo "movimento de câmera", que funciona como um resgate da vida do seu herói.


Outro elemento muito importante é a música. Se para mim que nasci nos anos 80 - justamente quando paramos de acompanhar a história de Zac - ouvir a trilha sonora já é motivo de enorme prazer, para quem viveu aqueles anos, reviver duas décadas de grande revolução sonora - Rolling Stone, Pink Floyd, David Bowie, The Cure, etc - deve ser uma experiência quase mística!!! Grande filme!
OBS: A partir de hoje, pretendo acrescentar sempre ao final dos meus textos uma ou mais críticas sobre o filme por mim enfocado. Acredito que, dessa forma, possa fomentar uma percepção mais ampla da obra analisada e, quem sabe, estimular o debate em torno dela.
Eis as primeiras escolhidas:

terça-feira, 17 de abril de 2007

A Última Noite: o rádio em película!


Iniciei hoje à tarde a minha aventura de descoberta pela obra do sr. Robert Altman. E comecei pelo final, por A Última Noite, seu último filme antes de seu falecimento no final do ano passado. E confesso que não foi nada animador esse começo...

Sejamos sinceros: o filme mantém um clima insuportável de monotonia, não existem altos e baixos, apenas uma linha de ação contínua e previsível no tempo - no espaço, não, afinal a história inteira se passa ou no Fitzgerald Theatre ou na lanchonete do outro lado da rua - e termina onde todo mundo já sabia que ia terminar: no fechamento das cortinas do teatro, localizado na cidade de St. Paul, estado de Minnesota! Nem as pontas nem o miolo do filme despertam muito interesse. A não ser para quem adora música caipira americana, pois ouvimos mais de uma dezena delas ao longo da sessão.


Aliás, se A Última Noite possui algum mérito, ele se encontra justamente na sua proximidade com um aspecto característico do rádio, qual seja, o de tocar músicas. Altman, procurando fazer uma espécie de homenagem a esse veículo de comunicação, nos apresenta a última noite de um programa radiofônico que está no ar há mais de trinta anos. Se excluíssemos a imagem da tela e deixássemos apenas o som, nossa percepção da obra não mudaria muito. A Última Noite é um programa de rádio com imagens! Não existem subtramas, o que poderia nos despertar um pouco a curiosidade e enriquecer essa história sobre a decadência do rádio.


Quando se tenta introduzir pitadas de humor, o resultado é ainda pior. Os momentos de graça não possuem nenhuma graça e - diga-se de passagem - as "piadas infames" da dupla de caubóis Dusty e Lefty( Woody Harrelson e John C. Reilly, respectivamente ) são melhores que as da história propriamente dita. Isso não exclui um comentário elogioso em relação à atuação de Kevin Klein, que interpreta o detetive-porteiro ou o porteiro-detetive, paspalho e desastrado e que, no entanto (ou por causa disso, não sei!), é o "narrador" do filme. Por falar em atuações, e a Lindsay Lohan? Além de ordinária (e bonitinha), ainda lhe deram uma personagem um tanto deslocada: filha de cantora de rádio, ela possui um temperamento depressivo-suicida, escreve poemas nessa linha dark, mas que, já próximo do final, canta alegremente uma canção folclórica meio improvisada e, para fechar com chave de ouro sua performance, torna-se uma agente do capitalismo "mais avançado"... Impressionante sua capacidade de transformação, capacidade essa não demonstrada pela película, infelizmente!


Outro ponto que chama a atenção é o comportamento da câmera durante o filme. Apesar de aparentar movimentos elegantes, a sua inquietude chega a ser irritante. Parece cachorro de família em dia de mudança, completamente perdido. Talvez ela estivesse mesmo desorientada, por causa da demolição do teatro e o fim do programa, querendo captar tudo quanto fosse possível dessa derradeira apresentação. Por enquanto, o certo mesmo é que, dos 50 filmes exibidos na mostra dos melhores do ano passado no Cinesesc, A Última Noite fique na última posição.


PS: Apesar dessa impressão negativa, temos de reconhece dois aspectos positivos, além daquele apresentado no começo desse texto: A Última Noite não possui um herói nem heróis, o que é, no mínimo, incomum dentro do cinema norte-americano. Revela, portanto, coragem por parte de seu realizador. Além disso, não me lembro de ter visto um Anjo da Morte tão lindo como o de agora, interpretado pela loira fatal Virginia Madsen. Outro sinal de coragem. E é só!

Estamira: o humano revelado!


Dizem por aí que cada ser humano é único, que ninguém é igual a ninguém, que todos nós possuímos virtudes e deficiências que, reunidos sob um mesmo nome ou um mesmo RG, nos tornam absolutamente exclusivos. Viva a diferença, portanto! Está tudo muito bem, tudo muito bom. Não posso, no entanto, deixar de fazer uma provocação: o discurso é bonito e politicamente correto, porém, às vezes, o comportamento das pessoas parece tão uniformizado, tão enquadrado em determinados padrões sociais que eventuais "singularidades" (ou o que é vendido como tal) tornan-se irrelevantes. Ou seja, falar da diferença é fácil. O problema é mostrá-la e, mais sério ainda, praticá-la. E é justamente isso o que faz o documentário Estamira, de Marcos Prado.


Mulher e filme são monumentais. Em pouco menos de duas horas, tem-se uma aula do que seja "Humanidade". Estamira é ignorante e sábia; Estamira é rude e doce; Estamira é pretensiosa e humilde; Estamira é louca e lúcida; Estamira ri e chora; Estamira choca e conforta; Estamira não tem vergonha de seu passado e finge não ter medo da morte no presente e no futuro; Estamira é bicho e humano, bicho humano, "bicho superior". Reforçando essa duplicidade, tem-se imagens da mais alta expressividade, em que o diretor mostra uma personagem pequena diante da imensidão da Natureza e das montanhas de lixo onde trabalha. Ainda assim, Estamira preserva uma grandeza e uma força próprias de um espírito acostumado às mais duras provações.


Estamira nos chama a atenção para a cretinice em que estamos mergulhados, sem que tomemos conta disso. Não estou querendo dizer com isso que o filme é uma crítica ao nosso modo de vida materialista, como se a sociedade de consumo fosse uma doença a ser eliminada e que deveríamos adotar um estilo de vida 100% verde, de "integração plena com a Natureza" ou algo do tipo. A questão principal que o filme propõe é a seguinte: por que num mundo dito globalizado as pessoas se mostram tão reticentes em aceitar o Outro, o Diferente? Por que é tão difícil para nós sermos tolerantes e demonstrar respeito pelo que o outro representa? (Dentro dessa linha, outro filme recente, Moacir - Arte Bruta, de Walter Carvalho, mostra-se também bastante fecundo para a discussão).


Somos tocados por um sentimento de estranha familiaridade. De certa forma, nos vemos em Estamira. Mas como alguém tão distante do nosso cotidiano social pode provocar um estado de identificação como o que emerge ao longo da fita? De forma eficientíssima, Marcos Prado revela uma personagem, ao mesmo tempo, única e universal. O diretor utiliza, principalmente, dois recursos formais para destacar a unicidade dessa mulher: a voz de Estamira domina quase a totalidade do discurso verbal do filme e em quase todas as suas aparições, ela está em primeiríssimo plano (enquadramento do rosto) ou em close-up (imagens da boca, das mãos, dos dedos dos pés, da cicatriz nas costas,...). As outras vozes - dos filhos e da madrasta da filha mais nova - possuem uma função mais "psicologizante", ao procurar explicar por que Estamira é do jeito que é, como chegou até aqui depois de todos os traumas vividos. Função legítima, mas que, pela própria força de Estamira e de sua fala, acaba sendo quase dispensável.


Assistir a Estamira é nada menos que uma obrigação cívica e moral. Num país em que a falta de sonhos pode comprometer - como já está comprometendo - o futuro do país, essa personagem pode, um tanto paradoxalmente, servir como um sopro de esperança. Quão bom seria se o cinema brasileiro revelasse para nós mesmos outros exemplos de humanidade pungente como o de Estamira!