Dizem por aí que cada ser humano é único, que ninguém é igual a ninguém, que todos nós possuímos virtudes e deficiências que, reunidos sob um mesmo nome ou um mesmo RG, nos tornam absolutamente exclusivos. Viva a diferença, portanto! Está tudo muito bem, tudo muito bom. Não posso, no entanto, deixar de fazer uma provocação: o discurso é bonito e politicamente correto, porém, às vezes, o comportamento das pessoas parece tão uniformizado, tão enquadrado em determinados padrões sociais que eventuais "singularidades" (ou o que é vendido como tal) tornan-se irrelevantes. Ou seja, falar da diferença é fácil. O problema é mostrá-la e, mais sério ainda, praticá-la. E é justamente isso o que faz o documentário Estamira, de Marcos Prado.
Mulher e filme são monumentais. Em pouco menos de duas horas, tem-se uma aula do que seja "Humanidade". Estamira é ignorante e sábia; Estamira é rude e doce; Estamira é pretensiosa e humilde; Estamira é louca e lúcida; Estamira ri e chora; Estamira choca e conforta; Estamira não tem vergonha de seu passado e finge não ter medo da morte no presente e no futuro; Estamira é bicho e humano, bicho humano, "bicho superior". Reforçando essa duplicidade, tem-se imagens da mais alta expressividade, em que o diretor mostra uma personagem pequena diante da imensidão da Natureza e das montanhas de lixo onde trabalha. Ainda assim, Estamira preserva uma grandeza e uma força próprias de um espírito acostumado às mais duras provações.
Estamira nos chama a atenção para a cretinice em que estamos mergulhados, sem que tomemos conta disso. Não estou querendo dizer com isso que o filme é uma crítica ao nosso modo de vida materialista, como se a sociedade de consumo fosse uma doença a ser eliminada e que deveríamos adotar um estilo de vida 100% verde, de "integração plena com a Natureza" ou algo do tipo. A questão principal que o filme propõe é a seguinte: por que num mundo dito globalizado as pessoas se mostram tão reticentes em aceitar o Outro, o Diferente? Por que é tão difícil para nós sermos tolerantes e demonstrar respeito pelo que o outro representa? (Dentro dessa linha, outro filme recente, Moacir - Arte Bruta, de Walter Carvalho, mostra-se também bastante fecundo para a discussão).
Somos tocados por um sentimento de estranha familiaridade. De certa forma, nos vemos em Estamira. Mas como alguém tão distante do nosso cotidiano social pode provocar um estado de identificação como o que emerge ao longo da fita? De forma eficientíssima, Marcos Prado revela uma personagem, ao mesmo tempo, única e universal. O diretor utiliza, principalmente, dois recursos formais para destacar a unicidade dessa mulher: a voz de Estamira domina quase a totalidade do discurso verbal do filme e em quase todas as suas aparições, ela está em primeiríssimo plano (enquadramento do rosto) ou em close-up (imagens da boca, das mãos, dos dedos dos pés, da cicatriz nas costas,...). As outras vozes - dos filhos e da madrasta da filha mais nova - possuem uma função mais "psicologizante", ao procurar explicar por que Estamira é do jeito que é, como chegou até aqui depois de todos os traumas vividos. Função legítima, mas que, pela própria força de Estamira e de sua fala, acaba sendo quase dispensável.
Assistir a Estamira é nada menos que uma obrigação cívica e moral. Num país em que a falta de sonhos pode comprometer - como já está comprometendo - o futuro do país, essa personagem pode, um tanto paradoxalmente, servir como um sopro de esperança. Quão bom seria se o cinema brasileiro revelasse para nós mesmos outros exemplos de humanidade pungente como o de Estamira!
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