Dito isto, me proponho a expressar e propagar toda minha admiração por esse filme tão maravilhoso. Hoje, assisti "Viver a Vida" (1962), de Jean-Luc Godard, pela terceira vez, mas por alguma razão que me escapa hoje, somente nesse reexame, percebi toda a força e beleza extraordinárias que emergem dessa história sobre uma vendedora de discos que se torna prostituta e mergulha numa espiral trágica da qual perde todo o controle. Por força das dificuldades financeiras em que se vê enredada, Nana, personagem de Anna Karina, acaba cedendo às "facilidades" da dura vida de prostituta.
Para ela, tudo que acontece em nossas vidas é de nossa total responsabilidade, não deixando espaço para que o "social" intervenha no nosso destino. No entanto, a seqüência final representa, claramente, o oposto, ou seja, como, muitas vezes, fazemos parte de um jogo em que cada movimento é determinado por forças não-individuais - ou sociais. Ali, no meio de uma briga da cafetinagem parisiense, ela é somente uma peça de manobra para que uma estrutura muito mais vasta se perpetue na sociedade. Godard, visionário que era, parecia antever a onda do individualismo exacerbado que passaria a pautar os comportamentos das pessoas e já criticava essa tendência. Será por esse motivo que Nana é premiada com um final tão trágico? Ela, como símbolo daquele tipo de pensamento, deveria morrer?
Aliás, sobre esse final, muito se escreveu sobre sua relação com o destino igualmente fatal da musa do pintor do poema de Edgar Allan Poe, lido pelo próprio Godard num dos tableaux finais. Tão obcecado estava o artista pela perfeição de sua obra - e que o levou a dedicar todo o seu tempo e esforço para terminá-la - que a própria fonte de inspiração, sua esposa, morreu ao seu lado sem que ele se desse conta do que estava acontecendo a seu redor. O pintor buscava, provavelmente, uma representação tão exata da sua esposa, inclusive no que se refere aos aspectos interiores, que terminasse por substituir a própria realidade. "Arte e beleza são vida". Godard, ao contrário, não acredita nessa hipótese. Para o diretor francês, conhecer a essência da vida humana é impossível. Ele até sugere uma tentativa de esquadrinhamento de Nana no prólogo do filme, quando a retrata de perfil e de frente. Porém, a primeira tomada do primeiro tableau a mostra de costas, o que nos impede de conhecê-la verdadeiramente.
"O pássaro é um animal com exterior e interior. Tire o interior e sobrará o exterior. Tire o exterior e verá a alma". Pássaro, símbolo da liberdade. Nana não é um pássaro, Nana não é livre - assim como todo ser humano. Nana está presa na teia social, não possui o livro-arbítrio que diz ter quando conversa com sua amiga Yvette. Não sendo pássaro, isso reforça a tese de que a alma de Nana não é passível de conhecimento. "Eu é outra pessoa", diz ela no interrogatório à polícia quando é acusada de tentativa de furto. A opção de trabalhar com uma personagem que, para ganhar a vida, vende o próprio corpo - o que a liga, diretamente, à profissão de ator/atriz - corpo que representa materialidade, exterioridade é mais uma evidência de que o que está em discussão é o papel de cada um no teatro da vida e, em última instância, a atuação dos artistas no cinema (não à toa, Brecht é uma referência fundamental para Godard).
Não poderia terminar esse texto sem fazer alusão à trilha sonora do filme. Valorizada ainda mais pelos silêncios que pontuam toda a história, as três músicas - duas instrumentais e uma cantada - criam uma atmosfera cheia de significados e, ao mesmo tempo, se adequam perfeitamente ao contexto no qual estão inseridas. O trecho musical que se repete várias vezes exprime com exatidão o estado de ânimo de Nana. O fato de receber cortes bruscos na sua execução, que não permite gerar no espectador uma emoção excessiva, parece ser mais uma referência a Brecht. No caso da cena da dança em meio às mesas de bilhar, a trilha permite à personagem um instante de liberdade, no sentido de uma libertação do mundo em que vive ( a tal ponto que isso chega a incomodar Raoul e seu amigo que conversam numa mesa). E a última - que, salvo um tremendo engano, é de Jean Ferrat - demonstra como Nana ainda representa(va) - a despeito de todas as intempéries da vida - um desejo por mais algo mais simples, até inocente. Num mundo que não permite mais a inocência, o melhor destino, talvez, seja mesmo a morte.
*Para melhor conhecer "Viver a Vida" e a obra de Jean-Luc Godard na internet:
http://www.contracampo.com.br/77/dvdvhsviveravida.htm
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult682u94.shtml
http://www.facom.ufba.br/com112_2001_2/nouvellevague/textos.html
http://www.coisadecinema.com.br/matArtigos.asp?mat=1510
http://www.panorama-cinema.com/html/critiques/vivresavie.htm
http://www.utp.br/proppe/X%20seminario_pesquisa/Artigos%20completos/FCSA/P%D3S%20MODERNISMO%20NO%20PRIMEIRO%20GODAR....doc
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult682u94.shtml
http://www.facom.ufba.br/com112_2001_2/nouvellevague/textos.html
http://www.coisadecinema.com.br/matArtigos.asp?mat=1510
http://www.panorama-cinema.com/html/critiques/vivresavie.htm
http://www.utp.br/proppe/X%20seminario_pesquisa/Artigos%20completos/FCSA/P%D3S%20MODERNISMO%20NO%20PRIMEIRO%20GODAR....doc
Um comentário:
Bom texto, especialmente nas partes em que analisa Nana.
"Viver a vida", na primeira vez que eu vi, não me entusiasmou tanto (claro que gostei, mas não como "Acossado" ou "O desprezo"), mas hoje eu considero um filme tão grande como esses e outros dele (vale citar que eu ainda não tive a oportunidade de assistir "Viver a vida" nos cinemas, ao contrário dos outros). Pensando bem (e vendo que Reed também parece ter esse impressão), talvez "Viver a vida" seja daqueles filmes que crescem verdadeiramente a cada nova assistida, além de ser, indiscutivelmente, um filme "sensivelmente" (e concretamente) diminuído e prejudicado na tela de Televisão.
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