terça-feira, 17 de abril de 2007

A Última Noite: o rádio em película!


Iniciei hoje à tarde a minha aventura de descoberta pela obra do sr. Robert Altman. E comecei pelo final, por A Última Noite, seu último filme antes de seu falecimento no final do ano passado. E confesso que não foi nada animador esse começo...

Sejamos sinceros: o filme mantém um clima insuportável de monotonia, não existem altos e baixos, apenas uma linha de ação contínua e previsível no tempo - no espaço, não, afinal a história inteira se passa ou no Fitzgerald Theatre ou na lanchonete do outro lado da rua - e termina onde todo mundo já sabia que ia terminar: no fechamento das cortinas do teatro, localizado na cidade de St. Paul, estado de Minnesota! Nem as pontas nem o miolo do filme despertam muito interesse. A não ser para quem adora música caipira americana, pois ouvimos mais de uma dezena delas ao longo da sessão.


Aliás, se A Última Noite possui algum mérito, ele se encontra justamente na sua proximidade com um aspecto característico do rádio, qual seja, o de tocar músicas. Altman, procurando fazer uma espécie de homenagem a esse veículo de comunicação, nos apresenta a última noite de um programa radiofônico que está no ar há mais de trinta anos. Se excluíssemos a imagem da tela e deixássemos apenas o som, nossa percepção da obra não mudaria muito. A Última Noite é um programa de rádio com imagens! Não existem subtramas, o que poderia nos despertar um pouco a curiosidade e enriquecer essa história sobre a decadência do rádio.


Quando se tenta introduzir pitadas de humor, o resultado é ainda pior. Os momentos de graça não possuem nenhuma graça e - diga-se de passagem - as "piadas infames" da dupla de caubóis Dusty e Lefty( Woody Harrelson e John C. Reilly, respectivamente ) são melhores que as da história propriamente dita. Isso não exclui um comentário elogioso em relação à atuação de Kevin Klein, que interpreta o detetive-porteiro ou o porteiro-detetive, paspalho e desastrado e que, no entanto (ou por causa disso, não sei!), é o "narrador" do filme. Por falar em atuações, e a Lindsay Lohan? Além de ordinária (e bonitinha), ainda lhe deram uma personagem um tanto deslocada: filha de cantora de rádio, ela possui um temperamento depressivo-suicida, escreve poemas nessa linha dark, mas que, já próximo do final, canta alegremente uma canção folclórica meio improvisada e, para fechar com chave de ouro sua performance, torna-se uma agente do capitalismo "mais avançado"... Impressionante sua capacidade de transformação, capacidade essa não demonstrada pela película, infelizmente!


Outro ponto que chama a atenção é o comportamento da câmera durante o filme. Apesar de aparentar movimentos elegantes, a sua inquietude chega a ser irritante. Parece cachorro de família em dia de mudança, completamente perdido. Talvez ela estivesse mesmo desorientada, por causa da demolição do teatro e o fim do programa, querendo captar tudo quanto fosse possível dessa derradeira apresentação. Por enquanto, o certo mesmo é que, dos 50 filmes exibidos na mostra dos melhores do ano passado no Cinesesc, A Última Noite fique na última posição.


PS: Apesar dessa impressão negativa, temos de reconhece dois aspectos positivos, além daquele apresentado no começo desse texto: A Última Noite não possui um herói nem heróis, o que é, no mínimo, incomum dentro do cinema norte-americano. Revela, portanto, coragem por parte de seu realizador. Além disso, não me lembro de ter visto um Anjo da Morte tão lindo como o de agora, interpretado pela loira fatal Virginia Madsen. Outro sinal de coragem. E é só!

Estamira: o humano revelado!


Dizem por aí que cada ser humano é único, que ninguém é igual a ninguém, que todos nós possuímos virtudes e deficiências que, reunidos sob um mesmo nome ou um mesmo RG, nos tornam absolutamente exclusivos. Viva a diferença, portanto! Está tudo muito bem, tudo muito bom. Não posso, no entanto, deixar de fazer uma provocação: o discurso é bonito e politicamente correto, porém, às vezes, o comportamento das pessoas parece tão uniformizado, tão enquadrado em determinados padrões sociais que eventuais "singularidades" (ou o que é vendido como tal) tornan-se irrelevantes. Ou seja, falar da diferença é fácil. O problema é mostrá-la e, mais sério ainda, praticá-la. E é justamente isso o que faz o documentário Estamira, de Marcos Prado.


Mulher e filme são monumentais. Em pouco menos de duas horas, tem-se uma aula do que seja "Humanidade". Estamira é ignorante e sábia; Estamira é rude e doce; Estamira é pretensiosa e humilde; Estamira é louca e lúcida; Estamira ri e chora; Estamira choca e conforta; Estamira não tem vergonha de seu passado e finge não ter medo da morte no presente e no futuro; Estamira é bicho e humano, bicho humano, "bicho superior". Reforçando essa duplicidade, tem-se imagens da mais alta expressividade, em que o diretor mostra uma personagem pequena diante da imensidão da Natureza e das montanhas de lixo onde trabalha. Ainda assim, Estamira preserva uma grandeza e uma força próprias de um espírito acostumado às mais duras provações.


Estamira nos chama a atenção para a cretinice em que estamos mergulhados, sem que tomemos conta disso. Não estou querendo dizer com isso que o filme é uma crítica ao nosso modo de vida materialista, como se a sociedade de consumo fosse uma doença a ser eliminada e que deveríamos adotar um estilo de vida 100% verde, de "integração plena com a Natureza" ou algo do tipo. A questão principal que o filme propõe é a seguinte: por que num mundo dito globalizado as pessoas se mostram tão reticentes em aceitar o Outro, o Diferente? Por que é tão difícil para nós sermos tolerantes e demonstrar respeito pelo que o outro representa? (Dentro dessa linha, outro filme recente, Moacir - Arte Bruta, de Walter Carvalho, mostra-se também bastante fecundo para a discussão).


Somos tocados por um sentimento de estranha familiaridade. De certa forma, nos vemos em Estamira. Mas como alguém tão distante do nosso cotidiano social pode provocar um estado de identificação como o que emerge ao longo da fita? De forma eficientíssima, Marcos Prado revela uma personagem, ao mesmo tempo, única e universal. O diretor utiliza, principalmente, dois recursos formais para destacar a unicidade dessa mulher: a voz de Estamira domina quase a totalidade do discurso verbal do filme e em quase todas as suas aparições, ela está em primeiríssimo plano (enquadramento do rosto) ou em close-up (imagens da boca, das mãos, dos dedos dos pés, da cicatriz nas costas,...). As outras vozes - dos filhos e da madrasta da filha mais nova - possuem uma função mais "psicologizante", ao procurar explicar por que Estamira é do jeito que é, como chegou até aqui depois de todos os traumas vividos. Função legítima, mas que, pela própria força de Estamira e de sua fala, acaba sendo quase dispensável.


Assistir a Estamira é nada menos que uma obrigação cívica e moral. Num país em que a falta de sonhos pode comprometer - como já está comprometendo - o futuro do país, essa personagem pode, um tanto paradoxalmente, servir como um sopro de esperança. Quão bom seria se o cinema brasileiro revelasse para nós mesmos outros exemplos de humanidade pungente como o de Estamira!