Na semana passada, tive a oportunidade de conhecer um pouco da obra do cineasta Francisco Cavalcanti, nome ligado desde os anos 70 ao cinema marginal da Boca do Lixo paulistana. Foram quatro as sessões a que pude comparecer: de acordo com a ordem em que as assisti, os filmes foram O porão das condenadas (1979), Amor imortal (2001), A hora do medo (1986) e Padre Pedro e a revolta das crianças (1984). No ciclo realizado pelo Centro Cultural São Paulo (Vergueiro), ainda fui apresentado à produção audiovisual do filho de Cavalcanti, Fabrício, que começou desde cedo a atuar nas películas do pai. Do rebento como diretor, conheci somente A pensão (2003). Foi, digamos assim, um "mergulho em piscina de criança" nesse cinema feito com pouquíssimos recursos, muita coragem e relativa aceitação.
"Aceitação"! Eis uma palavra importante quando se procura entender o movimento do cinema da Boca, em particular, e o cinema trash, em geral, realizado por figuras como José Mojica Marins, o Zé do Caixão (presente, inclusive, em alguns filmes dos Cavalcanti) e Ivan Cardoso. No folheto de divulgação da mostra "Francisco Cavalcanti - um cineasta e ator popular", o crítico André Gatti coloca na pauta a definição de "cinema popular", tanto a partir da sua produção como de sua recepção. E é esse segundo referencial que me interessa mais aqui.
Até pelo fato de as sessões no CCSP serem gratuitas, nota-se a presença na sala de pessoas muito humildes financeiramente (alguns dão a impressão de serem moradores de rua...). Ótimo!!! Que assim continue, apesar de alguns torcerem o nariz, pois esse tipo de freqüentador não respeitaria muito o silêncio sagrado dos cinéfilos. Certa vez, quase fui testemunha de uma briga em plena sessão, pois um rapaz ficou extremamente nervoso com o burburinho vindo do fundo da sala...graças a Deus, os ânimos logo se apaziguaram!!! Bom, o fato é que nas sessões desse último sábado e domingo, a sala contava com um bom número de pessoas, todas devidamente se entretendo com o que estavam vendo. Da minha parte, tive apenas uma decepção grave: justamente o último filme realizado por Francisco Cavalcanti, Amor Imortal, de 2001. Os outros, não obstante todas as precariedades de produção, surpreenderam-me positivamente.
Tudo isso me fez refletir sobre o propósito de um homem que decide realizar obras como essas. Seria ele um abnegado, preocupado que está em satisfazer, antes de mais nada, o desejo do público "popular" por histórias facilmente "digeríveis" e que reúnam elementos tão atrativos, como sexo, sangue e humor? Ou seria ele incapaz de produzir enredos de maior fôlego, com maior densidade psicológica, maior preocupação estética e maior apuro técnico? Considero essa questão de fundamental relevância para se analisar uma obra como A hora do medo ou Amor imortal.
Na primeira, uma mãe e seu filho, ambos traumatizados por maus-tratos do pai violento - que acaba assassinado pelo filho de 11 anos - decidem se vingar da sociedade, mais especificamente, das mulheres. Para isso, atraem diversas moças incautas para sua casa de campo e lá promovem um verdadeiro derramamento de sangue, logo após o filho se esbaldar em aventuras sexuais com as futuras vítimas. O marido de uma delas desconfia das nobres intenções daquela senhora de preto e de seu filho "galã". Decide, então, se candidatar à vaga de motorista particular da família, vaga que, estranhamente, exige que o pretendente não tenha família ou conhecidos muito próximos. A personagem interpretada pelo próprio Cavalcanti consegue o emprego rapidamente e, dessa forma, revelará o mistério do sumiço de sua tão amada esposa. Enredo simples, sexo, violência, pitadas de humor (in)voluntário, personagens muito bem delimitadas em campos éticos opostos, explicações psicologizantes e final (previsível e) feliz. Pronto para ser consumido pelas massas! Sem maiores questionamentos existenciais. No entanto, há de se ressaltar uma certa preocupação com o estabelecimento de um atmosfera tensa e sombria dentro do filme, o que se coaduna com o conteúdo proposto.
É justamente nesse ponto que recai o maior defeito de Amor imortal. Parece não existir nenhum compromisso com algo minimamente elaborado, o que é ainda mais grave quando se tem em mente que é o último filme de um diretor com o longo histórico de Francisco Cavalcanti. Iluminação, elenco, cenários, figurino, procedimentos da câmera, é tudo muito simplista. Em alguns momentos, passa a impressão de ter sido feito por um grupo de amigos que se reuniu um final-de-semana na praia e achou legalzinho realizar um filme caseiro, tudo temperado por mensagens da filosofia kardecista, o que o torna ainda mais entediante. Se a idéia era oferecer um produto popular, Cavalcanti parece ter errado na dose.
Enfim, a discussão está posta e é com muita alegria que os cinéfilos recebem esse tipo de programação alternativa. Não só porque resgata uma parcela importante do nosso cinema como também contribui para a popularização do ato de "ir ao cinema" por parte da camada excluída dos circuitos exibidores comerciais - caros e, muitas vezes, ruins.
Não encontrei quase nada sobre o cinema de Francisco Cavalcanti e o cinema trash realizado a partir dos anos 60 no Brasil. Interessante mesmo, só o link abaixo. Aceito sugestões, indicações e dicas!!!